146 dias de isolamento

2.967.064 infectados.
99.703 mortes

Com quase três milhões de infectados e cem mil mortes, os números só crescem, já que há cerca de três meses tem morrido mil pacientes de COVID por dia. No entanto, parece que está tudo normal. Povo vai para a praia, para a festa ou churrasco, vai para o bar… Sem máscara. Enquanto isso eu luto diariamente para ter forças e continuar firme no meu isolamento de quase cento e cinquenta dias. Eu ontem chorei por culpa de o Dante estar usando em demasia o celular dele com joguinhos de vídeos no Youtube Kids. E eu chorei porque tenho medo de levar ele ao parque, que já está aberto mas ainda me deixa insegura de sair com ele para este tipo de passeio. Só em São Paulo temos mais de dez mil mortos. Não sei se é momento ainda de ir a parques. Chorei também porque ele falou que quer ver a professora Keli e disse estar com saudades dela. Eu me revolto porque as pessoas por aí vivem como se tudo estivesse bem. A minha amiga foi com o filho de 1 ano, outro filho de 5 anos para o interior de São Paulo, numa longa e cansativa viagem na casa da mãe dela e tem feito passeios e festas por lá. Eu não sei o que se passa na cabeça dessas pessoas. Eu não sei como que o tédio e a vontade de sair superam o medo da morte ou o medo de perder um ente querido sem nem ter como velar o corpo. Todos os dias são de luta para ter energia de poder oferecer tempo de qualidade para meu filho, para manter a casa em ordem, para cuidar da minha saúde, para me manter atualizada profissionalmente na busca de um novo trabalho, para manter a minha prática budista ativa e vibrante, para ter uma vida social saudável dentro do possível pelos canais virtuais. Não me resta tempo e nem energia para mais nada. E há dias em que nem com o básico eu consigo cumprir.

Dois dias atrás uma notícia assustadora abalou ainda mais as pessoas: Uma explosão de proporções enormes causada por nitrato de amônia causou uma destruição avassaladora na zona portuária de Beirute, no Líbano. Foram mais de 130 mortos e mais de cinco mil feridos, além de destruição de importantes silos de grãos que abasteciam a região. Até o momento ninguém reivindicou um possível ataque e a ideia de terrorismo se distancia, indicando o caminho da investigação para um acidente por negligência e falta de fiscalização. A mídia brasileira, bem como a internacional, deram ampla cobertura dramática enfatizando as mortes, filmando os aflitos ao vivo e toda a destruição que seguia entre escombros e poeira de devastação. 


Isso me fez refletir em como e por que a morte pelo COVID foi banalizada ou normalizada. Então fui buscar entender esse fenômeno e me caiu aos olhos uma matéria muito interessante elaborada pela Fiocruz. Cito trechos:

“Ao longo do acompanhamento e análise dos relatos científicos, principalmente aqueles da ordem da vigilância epidemiológica, dos meios de comunicação e das iniciativas de respostas governamentais sobre a Pandemia de COVID-19, identificamos dois analisadores importantes em muitas das principais narrativas sobre a maior e mais letal ameaça sanitária deste século até o momento: 1- A retomada do conceito de risco como estratégia de classificação de humanos mais ou menos propensos a determinado agravo de saúde – os chamados grupos de risco; 2- A consequente identificação de grupos mais ou menos vulneráveis à infecção e à mortalidade pelo Sars-Cov-2….

Uma das questões que se tornou pregnante nas notícias, diálogos cotidianos e planejamento de ações de isolamento e flexibilização do distanciamento social, é a justificação moral científica de que as mortes desses indivíduos são esperadas, previsíveis e, portanto, podem ser naturalizadas. Neste sentido, podemos prosseguir com nossa segunda reflexão: a naturalização das mortes de pessoas classificadas em grupos de risco. Em meio a reestruturação da previdência social no Brasil, junto às medidas de austeridade de cunho ultra-neoliberal que atingiram em cheio a sustentabilidade de políticas públicas e sociais, bem como o imenso corte do financiamento da ciência e tecnologia no país, surgem perigosas polarizações. A noção de que, no lado positivo, estão os indivíduos produtivos e que são capazes de gerar renda e, no lado negativo, aqueles que oneram o sistema, o Estado e as empresas por sua “improdutividade”, dissemina: (a) o valor moral de que nem todas as vidas valem a pena ser salvas; (b) que a morte dos grupos e indivíduos “do lado negativo” é esperada e natural em meio à pandemia. (7,8)…

O perigo da “normalização” da morte é o relaxamento das medidas de proteção e tratamento dessas pessoas em tempos de escassez de recursos e colapso dos sistemas de saúde. Essa pseudo-normalização é um reforço ao acúmulo de descasos que o país vem sofrendo. Em especial, a progressão desenfreada do imenso fosso social que vem sendo produzido. Os desinvestimentos em educação, saúde e direitos trabalhistas, além da conveniente produção de informações pobres em conteúdo e promotoras de encolhimento reflexivo da população brasileira seguem na empreitada de alargar ainda mais esse vão de iniquidades.”

A matéria toda está aqui.

Publicado por Fernanda Serpa

Formada jornalista há 15 anos, sou produtora de conteúdo freelancer. Especializada em redação web, também tenho grande carinho pela criação de ficções e poesias. Sou budista, mãe do Dante e culinarista por hobbie.

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