Da rotina à intervenção

p { margin-bottom: 0.25cm; line-height: 120%; }a:link { }

– Tá nervoso porquê? – disse, imponente, o soldado dentro dos seus justíssimos trajes de exercícios.




     Todos os dias da semana eu deixo na escola o meu filho e, na revigorante caminhada da volta pra casa, enquanto o aplicativo do meu celular vai contando os meus quilômetros rodados e calorias perdidas, resta-me tempo suficiente para perceber uma certa rotina: vem o rapaz de bicicleta tentando vencer os obstáculos que não deveriam existir em uma ciclovia colada ao córrego da Avenida Nadir Dias de Figueiredo. Lá, do outro lado da calçada, o senhor com seu irrequieto poodle sempre para e conversa com o borracheiro da esquina enquanto fuma seu cigarro. Aqui do meu lado, o vem e vai dos corredores, maratonistas, aposentados a caminho do Parque do Trote. Vira e mexe alguém me lança um “bom dia”, aliando-me na sua cumplicidade do exercício matinal. Qualquer dia eu entro lá também para prolongar a minha caminhada! E tem também os jovens em roupas sociais, alcançando preguiçosamente o ponto de ônibus com os olhos ainda inchados de sono, a caminho do trabalho no escritório. E o vendedor de sorvetes, magricela, empurrando sem vontade seu carrinho amarelo. Fica um cenário meio que “Show de Truman” nessa rotina que vai cozinhando a paisagem a cada dia.
     Hoje, porém, essa rotina foi quebrada por um grupo de soldados da Guarda Civil, que rapidamente me ultrapassaram correndo enfileirados, e se direcionavam a caminho da entrada do parque. Vinham ritmados pela rua, confiantes e desimpedidos naquele espaço que pertence aos carros. Ali, logo à frente, notei logo que um deles gesticulava um sinal de “pare” com a mão erguida para os carros que se amontoavam no retorno da avenida. Todo esse alvoroço explicava a ausência de trânsito que parecia rara para o horário naquela via.
     Eu me distraí assistindo a todo esse movimento. Foi então que um dos motoristas dos carros, que não visualizava a situação de forma integral, decidiu meter a mão na buzina para tentar fluir em seu caminho. Imediatamente, a reação veio:
     – Tá nervoso porquê? – disse, imponente, o soldado dentro dos seus justíssimos trajes de exercícios.
     Eu não leio pensamentos, não, mas creio que o motorista se arrependeu ao arrancar numa tentativa de ultrapassagem do carro à sua frente, que obedecia bovinamente àquela mão cheia de autoridade do guarda. Misturando uma sensação de injustiça, pelo claro abuso de autoridade do guarda, com o sentimento de embaraço, houve uma breve discussão, interrompida pela ameaça:
     – Vou anotar sua placa!
     – Anota os números, que eu já guardei as letras na cabeça – disse o colega dele.
     Segui meu caminho na última subida em direção à minha casa pensando na cena toda. E na relevância também de tudo isso. Da necessidade de parar o trânsito para se exercitar em plena via de carros. Da impaciência de aguardar o movimento do carro à frente. Vai anotar a placa e reportar o que? Desacato? São duas as versões da história, mas a única relevante é aquela que carrega o peso do poder com sua palavra final e inquestionável.
     E de toda essa observação, retive meu pensamento à cidade do Rio de Janeiro, que atravessa agora mais uma crise inventada pela política em acordo com a mídia, que repete incansável a palavra “violência” diariamente aos telespectadores, neste cenário de intervenção Federal. Se em uma situação cotidiana distante da realidade da guerra já existe tanta violência desnecessária, imagino a carnificina ao se garantir aos militares agir sem o risco de se submeterem a uma Comissão da Verdade. Agirem sem medo de punição, de auditoria.
     Não é difícil de prever um descontrole iminente quando é evidente que esta condição entrega ao militar, sedento de violência, o julgamento de quem é o culpado e de quem deve morrer. Já nem será preciso alegar legítima defesa. Todos os soldados serão seus próprios comandantes e toda decisão prescinde de uma alçada: Ela agora se torna horizontal.


Publicado por Fernanda Serpa

Formada jornalista há 15 anos, sou produtora de conteúdo freelancer. Especializada em redação web, também tenho grande carinho pela criação de ficções e poesias. Sou budista, mãe do Dante e culinarista por hobbie.

2 comentários em “Da rotina à intervenção

Deixe um comentário